Em 2015, o mundo gastou em Saúde aproximadamente U$ 7,2 trilhões. Desses, aproximadamente metade ocorreu nos EUA. Desde 2013, mais de 576 deals com “health techs” (startups ligados à Saúde) foram fechados nos EUA, totalizando mais de U$ 4,5 bilhões. E como os americanos não brincam em serviço, a FDA (a ANVISA americana) já começou a aprovar diagnósticos realizados por modelos de IA, sem a necessidade de um especialista – como exemplo, a aprovação do produto “IDx-DR”, do startup americano IDx, para diagnóstico de diabetes através da retina. Pelo que se pode observar, portanto, o setor de Saúde parece um mercado bastante promissor.
Quais os desafios do setor de Saúde? O potencial desse mercado não se explica apenas pelo seu tamanho e representatividade para a população. Há problemas antigos no setor, os quais vêm atrasando sua modernização, mas que estão sendo resolvidos, cada vez mais, com novas tecnologias:
- Padronização – os registros de pacientes não seguem um padrão que possibilite o intercâmbio de informações entre as várias instituições. Apple, Amazon, Google, IBM, Oracle e Salesforce assinaram recentemente uma moção para que o governo americano adote o “Fast Healthcare Interoperability Resources” (FHIR), padrão que garantirá a interoperabilidade entre as diversas plataformas.
- Segurança – desde 2017, incidentes de segurança de informação tem agitado o mercado de Saúde, com dados de pacientes sendo hackeados de sistemas em hospitais. Isso tem exposto a fragilidade desses sistemas e infra-estruturas de dados, os quais ainda rodam, em sua maioria, em data centers.
- Privacidade – os pacientes estão cada vez mais conscientes de seu direito à privacidade de dados, os quais têm sido comercializados ou compartilhados sem sua autorização. Há um desejo da população para controlar quais aplicativos, sistemas e instituições podem ter acesso a seus dados de saúde.
- Medicamentos Falsos – entre 1 e 30% dos medicamentos que transitam globalmente são falsos, sendo que esse percentual é significativamente mais alto na Ásia. Mais de 1 milhão de pessoas morrem por ano devido ao uso de medicamentos falsos, tornando seu rastreamento, por toda cadeia de valor, um imperativo urgente. Leis já foram criadas para isso há tempos, na Europa e EUA, mas o processo de rastreamento é lento devido às dimensões envolvidas.
- Intermediários – nos EUA, são necessários mais de 3 intermediários para levar um remédio da fábrica ao paciente, gerando aumento de preços, burocracia e atrasos no abastecimento.
- Atendimento – o setor de Saúde não é um dos mais destacados em satisfação dos clientes. A burocracia e a falta de uma visão centrada no paciente, entre outros fatores, faz essa setor ter uma das piores jornadas do consumidor.
Porque os tech giants escolheram esse setor? Não é a toa que o Google, Amazon, Apple e Microsoft, entre outros gigantes da Internet (b) vislumbram oportunidades significativas nesse setor. O tamanho desse mercado, seu potencial de ruptura com o uso de novas tecnologias cognitivas e o aproveitamento dos ativos e capacidades dessas empresas, gera uma oportunidade fantástica para elas. Além disso, é uma forma delas se expandirem e ocuparem outros mercados:
- Competição – os tech giants vêm se enfrentando há tempos, com dificuldade crescente de aumentar suas vendas dentro dos mercados onde atuam. O ingresso num novo mercado, com as perspectivas e as dimensões oferecidas pelo de Saúde, pode gerar um novo diferencial competitivo e aumentar o faturamento.
- Capacitação – os tech giants já fazem uso intensivo de IA, pesquisam e investem permanentemente em novas tecnologias, oferecem computação de alta performance e focam no cliente, como nenhuma empresa do setor de Saúde.
- Cloud – há um interesse comum a todas esses gigantes, no sentido de maximizar suas plataformas na nuvem (Azure, AWS, Google Cloud), aumentando o número de clientes, a intensidade e a diversidade de uso dos serviços oferecidos. Provavelmente seu maior ganho estará no uso intensivo de suas plataformas, e não na venda de dispositivos ou de serviços de Saúde.
- Cross-selling – a Apple, por exemplo, pode oferecer aplicativos de saúde para seus clientes, conectando-os a várias instituições como seguradoras, hospitais, médicos e empresas farmacêuticos, gerando oportunidades de venda em ambos os lados do mercado.
- Aumento da base de clientes – clientes de livros de uma Amazon podem vir a ser também clientes da PillPack, empresa de remédios online adquirida pela Amazon. Da mesma forma, pacientes de remédios e serviços da Amazon poderão ser fidelizados como Premium e adquirir produtos ou serviços não ligados à saúde. Novos clientes poderão também surgir com o lançamento de novos serviços, plataformas e produtos.
- Uso intensivo de dados – com o crescimento da massa de dados de saúde, torna-se imprescindível que as empresas do setor tenham a capacidade de utilizar tecnologias cognitivas para analisar, diagnosticar, prever e monitorar essas informações, de modo a oferecer o melhor serviço possível.
O que torna os tech giants tão competitivos? Empresas como Google, Amazon, Microsoft e Apple detém capacidades que não só as diferenciam dos concorrentes atuais nesse segmento, mas trazem também componentes diferenciados e inovadores:
- Marca – ter uma marca associada à inovação permanente, a dimensões globais e à busca incessante da satisfação do cliente, constitui uma vantagem significativa para ingresso nesse setor. Obviamente há desafios também a enfrentar: levará um tempo ainda para que o Google, por exemplo, deixe de ser visto apenas como uma empresa de mecanismo de busca e passe a ser considerado como um player de peso – o que já está avançando a passos largos.
- Organização – a Alphabet, dona do Google, por exemplo, possui 4 subsidiárias focadas no uso de IA para a Saúde: a Verily, que desenvolve/adquire soluções de analytics (Freenome, de genoma, por ex.); A DeepMind, dedicada à pesquisa; a Calico, focada no estudo e combate ao envelhecimento e doenças correlatas; e finalmente a GV, venture capital, que está investindo cada vez mais no setor de Saúde. A Microsoft, por outro lado, lançou a iniciativa “Healthcare NExt” em 2017, focando investimentos, parcerias, sua experiência em IA e na plataforma Azure, para desenvolver soluções para o setor de Saúde (a).
- Base de Clientes – a base de clientes sobre a qual esses gigantes poderão operar é realmente impressionante: a Amazon possui cerca de 300 milhões de clientes, sendo 100 milhões fidelizados (Prime) e 5 milhões de vendedores. A Apple possui uma base de 86 milhões de usuários de iPhone – mais do que os 50 milhões de clientes da UnitedHealthCare, maior grupo de Saúde dos EUA.
- Foco no consumidor – é inegável o sucesso de empresas como a Amazon e Apple no que diz respeito a satisfação de seus clientes. Seja pelo tipo de experiência, pelo design e funcionalidade dos produtos e serviços, essas empresas representam o que há de mais avançado em excelência na jornada do consumidor. Adicionalmente, o setor de Saúde é conhecido pelo seu baixo nível de atendimento, criando aí uma oportunidade fantástica para esses gigantes. A Apple, por exemplo, possui um NPS (índice relacionado à satisfação do cliente de seguro saúde) de 60, contra uma média de mercado de 12.
- Plataformas e infraestrutura – os tech giants já possuem plataformas (AWS, Azure, Google Cloud), ecossistemas (Apple) ou infraestrutura logística (FBA – fulfilled by Amazon) sobre os quais estão construindo seus produtos e serviços para o setor de Saúde. A Amazon, por ex., usa sua expertise de fulfillment para operar esses serviços para grandes indústrias farmacêuticas. Está também se posicionando como a infraestrutura para rastreamento da cadeia de valor de remédios. A Apple, por sua vez, está replicando sua experiência bem sucedida em seus dispositivos, integrados ao ecossistema de aplicativos, conectando diversas partes da jornada do paciente: dispositivo (iPhone), registro do paciente, plataforma e serviços (telemedicina, p. ex.).
Quais as estratégias de cada gigante tech? Cada gigante está desenvolvendo estratégias conforme sua visão do mercado de Saúde e suas características principais. São empresas egressas de e-commerce, dispositivos focados nos consumidores, software e mecanismos de busca, porém com a mesma ambição de dominar esse segmento:
- Amazon – com sua experiência em e-commerce e seu foco incansável no cliente, a Amazon já foi capaz de oferecer sua infraestrutura de nuvem (AWS) e sua expertise em logística (FBA) como serviços. Seguindo esse “DNA”, está se consolidando como uma empresa de soluções logísticas (fulfillment, tracking, distribuição, compras, transporte), de e-commerce (PillPack) e meios de pagamento entre outros. O que se vê é uma estratégia de reduzir a intermediação no setor, inserir inteligência e assumir os processos de back-office das empresas de Saúde. Em segundo lugar, a Amazon deseja ser uma pioneira em sistemas de diagnóstico e de monitoramento de saúde dos pacientes, a partir dos dispositivos (wearables) e das residências – há mais de 10 mil funcionários contratados na Amazon somente para seus dispositivos Alexa e Echo (c).
- Google – o Google, ou melhor, a Alphabet, empresa holding do Grupo, possui o maior número de iniciativas focadas em Saúde. Isso pode gerar uma dispersão de esforços, mas, como toda empresa ágil, não tem medo de errar e está apostando que algumas sejam bem sucedidas. Sua visão é ser uma empresa de IA, sendo uma nova referência para diagnóstico e tratamento de doenças com o uso de tecnologias cognitivas, especialmente nos casos que requeiram imagens, como as doenças oculares, câncer, etc. Além disso, a Alphabet pretende intensificar seus investimentos em sua nuvem, Google Cloud, para destacar-se em mercados altamente regulados, como o financeiro e saúde.
- Apple – a Apple tem a visão de um mercado de Saúde totalmente centrado no cliente. Ela possui o ecossistema de apps, os dispositivos, a base de clientes, a marca, as parcerias e a excelência na jornada do consumidor para tanto. Além disso, está eliminando a fronteira entre o mercado de Saúde e o de Bem-estar, usando seus dispositivos para fundir os dois. Se a empresa conseguir dominar os registros eletrônicos de pacientes e seus dados pessoais de saúde, estará proporcionando um poder incrível aos consumidores. Empresas fabricantes de dispositivos médicos, as quais normalmente não têm dado prioridade à jornada do consumidor, são sérias candidatas a perder mercado para o iPhone ou para o iWatch. Da mesma forma, as empresas de pesquisa clínica correm o risco de serem substituídas com os recentes avanços da Apple nesse segmento, através do ResearchKit e o CareKit.
- Microsoft – a principal estratégia da Microsoft para o setor de Saúde está voltada para alavancar os serviços de armazenamento e gestão de dados em sua nuvem, Azure, a qual está crescendo 12% ao ano: “Intelligent health through AI and the cloud”, como descrito em seu website (d) . Estão também apostando nas soluções de “Lifestyle Management” (monitoramento de pacientes com algum tipo de doença, ou idosos que requerem acompanhamento), além de aparelhos médicos.
Para as empresas do setor de Saúde, as iniciativas dos tech giants não representam apenas uma ameaça; podem trazer oportunidades também, seja sob forma de parcerias ou na contratação de serviços para reduzir custos ou melhorar a jornada do paciente. De qualquer forma, é fundamental que as empresas de Saúde conheçam e discutam essas estratégias, para melhor enfrentar as mudanças radicais que ocorrerão em seu setor. Afinal, não seria muito sensato desconsiderar o que o Google, Microsoft, Apple e Amazon estão preparando.
Referências
(a) Microsoft and partners combine the cloud, AI, research and industry expertise to focus on transforming health care, Feb 16, 2017 | Peter Lee ‐ Corporate Vice President, Microsoft Healthcare.
(b) Existem outros gigantes tech, como a IBM, que também estão desenvolvendo iniciativas importantes no setor de Saúde (Watson, por exemplo). No entanto, preferi focar nos gigantes da Internet, como os melhores exemplos de ambição, ruptura, pesquisa, inovação, investimento, flexibilidade e excelência na jornada do consumidor.
(c) Amazon dobra número de funcionários de Alexa e Echo em cerca de 1 ano, 14/11/2018 , Valor Econômico.
(d) Microsoft’s focus on transforming healthcare: Intelligent health through AI and the cloud, Feb 28, 2018, Peter Lee – Corporate Vice President, Microsoft Healthcare.
Microsoft Teardown: Cloud, AI, & Subscriptions And The Next Trillion-Dollar Company, CB Insights, 2018.
Google Strategy Teardown: Google Is Turning Itself Into An AI Company As It Seeks To Win New Markets Like Cloud And Transportation, CB Insights, 2018.
Apple in Healthcare: how the tech giant is attacking the Healthcare space, CB Insights, 2018.
Amazon In Healthcare: The E-Commerce Giant’s Strategy For A $3 Trillion Market, CB Insights, 2018.
How Google Plans To Use AI To Reinvent The $3 Trillion US Healthcare Industry, CB Insights, 2018.
Apple Is Going After The Healthcare Industry, Starting With Personal Health Data, Jan 8, 2019, CB Insights.